Afecções de mulher: a construção do feminino no Compêndio Psiquiatria Clínica e Forense de Antonio Carlos Pacheco e Silva ( São Paulo, 1930-1940)
Resumo
A pesquisa analisou a emergência da mulher no discurso médico durante a Era Vargas (1930 a 1945), especificamente, o divulgado pelo psiquiatra Antonio Carlos Pacheco e Silva (1889-1980). Buscamos compreender quais fatores legitimavam suas narrativas, no bojo da construção da normalidade e anormalidade a partir de São Paulo, o qual tinha como escopo proposições que remontavam a eugenia, organicismo e biodeterminismo ou como tais teorias corroboravam à construção da saúde mental feminina ou seus impactos nas vivências de mulheres, principalmente, em seus direitos como cidadãs para, deste modo, contrapor os diagnósticos à realidade de experiências femininas evidenciadas tanto pela documentação, quanto pela historiografia. O material de pesquisa remonta ao compêndio Psiquiatria Clínica e Forense escrito pelo médico paulista, cuja edição, desde a primeira publicação, em 1940, foi largamente utilizada por estudantes da Escola Paulista de Medicina e da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo, auxiliando a formação de profissionais das áreas de medicina psiquiátrica e direito penal durante a primeira metade do século XX, no Brasil. Por intermédio do levantamento sistemático dos excertos, casos e imagens que evocam o feminino na obra foram inventariados e analisados em perspectiva interdisciplinar, pois a hermenêutica do cotidiano, bem como os nexos que se estabelecem no diálogo entre diferentes campos do conhecimento, são tratados como possibilidades epistemológicas de entendimento das experiências femininas que atravessam casos individuais e instituições de poder voltadas à sociedade do trabalho, fundadas na medicalização dos corpos, na ordem e no progresso que caracterizaram as origens da República (1889). O primeiro capítulo da dissertação é composto por uma breve análise da extensa biografia de Pacheco e Silva e como essa influência dos saberes divulgados em seu compêndio, bem como os pressupostos da ciência do início do século XX, em oposição aos registros historiográficos das experiências femininas durante o mesmo período. O capítulo seguinte adentra o universo das experiências registradas nos casos, as três mulheres sob observação especializada serão enquadradas enquanto anormais pelos sentimentos exacerbados e o desvio do comportamento sexual desejável ao papel feminino. O capítulo três desvela discursos impostos às mulheres que supostamente subverteram seus papeis enquanto cuidadoras, também três mulheres que se tornaram mães assassinas. O último capítulo, possibilitado pelos discursos da epistemologia feminista, adentra as fragilidades e as resistências femininas na esfera jurídica, que defendia indispensavelmente depender da psiquiatria para uma atuação efetiva. A análise permite considerar que o discurso científico disseminado como verdade biológica, anteriormente legitimado pela religião, as classificam como inferiores em relação aos homens, pois em constante risco de desequilíbrio, logo, forçosamente, sujeitas ao tutelado masculino. A maternidade, suposta essência feminina, evoca as mulheres como cuidadoras, mantenedoras da vida doméstica e as convocavam a assumir lugares sociais impostos rigidamente, mesmo que ao longo da primeira onda do feminismo ranhuras nas redes de poder permitiram às mulheres alguma mobilidade. Os resultados as desvelam nos limites descritos pela conduta sexual e moral divulgada pela Medicina e autorizada pelo Direito, que normatiza a feminilidade sadia como mulher-esposa-mãe.